Dia desses, atendendo um paciente, a secretária bateu na porta da minha sala, pediu
licens e disse:
- Doutora, a Katherine no telefone. Disse que quer falar com a senhora...- se eximindo, com a sobrancelha arqueada e expressão de "eu disse que a senhora não podia atender, mas..."
Bom, primeiro ela sabe que, quando estou atendendo, é quase impossível, visto minha profissão - dentista -, atender o telefone.
Ambas sabem, pois Katherine é minha filha mais velha. O combinado, sempre, é: deixe recado que eu retorno "assim que possível".
Mesmo assim, removi as luvas, achando ser algo sério - como um incêndio no edifício em que resido - e lá fui eu, atender o telefone...
- Alô - com voz de desagrado.
- Mãe?...
- Fala, filha...
- Mãe...então, mãe...tipo assim... uma mulher ligou aqui e disse que ia chamar a polícia!!! - num tom desesperada...
- Chamar por quê? O que vocês fizeram? - entre dentes, sussurrando, pausadamente.
- Nada, mãe...eu, hein!...tipo, a mulher ligou, e perguntou se..tipo..., tinha algum adulto aqui e...tipo..., eu falei que não...daí, tipo, ela disse que se a gente não parasse de andar pelada...tipo...ela ia ter que chamar a polícia pra gente!!
- Katherine!! Não acredito que você ligou aqui, sabendo que eu só atendo se for uma emergência, e eu achando que era, pra me dizer isso? Em casa, quando eu chegar, nós conversamos....tchau!!
- Mas, mãe...
- Tchau, filha!
- Tá...tchau, mãe... - visivelmente contrariada.
Voltei à minha atividade e a tarde transcorreu sem maiores problemas.
Passado uns dias, chego em casa a noite, após um longuíssimo dia de atendimento e me deparo com uma correspondência do Conselho Tutelar. Meu queixo caiu. Sou separada, em circunstâncias, digamos, nada amistosas, e a primeira pessoa que veio a minha mente foi o falecido! Logo pensei: aquele pulha, depois de tantos anos, vai voltar a me encher os pacovas! Oh, Lord! Dai-me paciência....
A audiência - será que posso chamá-la assim? - era daqui a dois dias. Nesse período, o inconformismo me corroeu.
Desmarquei os pacientes e fui, na data oportuna, à entrevista (também não sei se é chamada assim...). Foi um estresse só!! Gritei com as meninas, com o
defunto, com o transeunte, com o semáforo, com a vaga apertada defronte ao conselho...Praticamente uma TPM antecipada.
Bom, entrei, esperei minutos intermináveis, até ser atendida pela funcionária, atrás de uma parede, sentada em um banco, com um vidro minúsculo nos separando, tais quais as bilheterias de estádios de futebol. Imaginei a razão. Quantos pais e mães, na fúria em que me encontrava, não deviam ter voado no pescoço - largo, diga-se de passagem - da funcionária. Ao menos terem a vontade de esganá-la, meu caso naquele momento.
Estava agendado para as 13 horas - se tenho um TOC, desses obsessivocompulssivíssimo, é com horário. Se eu chegar atrasada em qualquer compromisso, pode clamar pelo resgate pois algo de ruim aconteceu.
Já passava das 15 horas. Nada. Necadepitibiribas de atendimento, entrevista ou audiência. Subia o sangue, junto com os ponteiros do relógio e da minha paciência...
17h30. Hora em que fui convidada a entrar na sala da conselheira. Indignação era meu nome! Por tudo. Como eu podia ter sido denunciada ao Conselho Tutelar, órgão que apura casos de abusos, violências? Eu? Qual seria o motivo? Minha casa é tranquila, não tem gritaria, festas de arromba, nada, nada que me levasse àquele lugar. Não espanco minhas filhas, não abuso fisicamente e muito menos psicologicamente. Na realidade, o ser vivo na minha casa que mais escuta bronca é meu york, machinho minúsculo - não pesa dois quilos - que insiste em marcar território por todos os cantinho possíveis, da casa toda.
Não informavam por telefone o motivo, o assunto,
de modos que devia mesmo ir até lá. Martelei aqueles dias todos o que poderia ser, que houvesse levado o acéfalo do meu ex, pai das meninas, a tamanha maldade. É, só podia ser ele. Aliás, naquele momento, se chovesse ou um passarinho defecasse na minha cabeça, a culpa seria dele!!
Entrei. O recinto era úmido, sujo, com uma larga janela e havia duas mesas, nas quais estavam sentados nas cadeiras giratórias antigas, rasgadas e desbotadas, um homem e uma mulher - obviamente cada um em sua mesa. Olhei para eles. O suor, de constrangimento, fazia um
bigodinho no meu rosto...
A mulher pediu-me para sentar. Declinei, dizendo que estava sentada desde as 13 horas - para ela saber que eu cheguei na hora marcada!
- Boa tarde. - ela saudou.
- Boa tarde - respondi polidamente.
- É a senhora Raquel? Nessa hora eu me vi passando por cima da mesa e apertando o pescoço da mulher, mas era só um pensamento, um devaneio...
- Isso - respondi secamente.
- Recebemos uma denúncia anônima e...- a interrompi.
- Anônima?! A- nô-ni-ma?! Como assim, anônima? Quem faz denúncia anônima?? Estava estupefata!!
- Sim, senhora. A maioria das nossas denúncias é anônima. Pois bem. O teor da denúncia é... - nova interrupção. Desta vez estava sentada. Não acreditava que eu havia sido denunciada e mais ainda: anonimamente! Quem seria o FDP que fez aquilo, hein?
- Sim, qual é o teor? O que diz aí...mas não dá MESMO pra saber quem é? Não tá escrito aí, num cantinho? Independente disso, foi o pai delas! Claro que foi! Quem mais podia ser? Ele vive pra me aborrecer! É assim desde que pedi pela separação, porque... - agora fui interrompida.
- Senhora, o teor é sério. Diz aqui que a casa onde moram as menores, suas filhas, é uma casa de
libertinagem. Onde há comportamento libertino...vivem exibindo, nuas, através de janelas abertas, o corpo aos vizinhos...
Fiquei muda. Passado o choque, desandei a rir.
- A senhora só pode estar brincando comigo! É uma pegadinha! Tem câmeras nesta sala, né? Anda sorrindo, aliviada.
- De jeito maneira. Leia aqui. - apontou com o dedo longo, unha manicurada, a linha onde estava o parágrafo que dizia "...se exibem, diariamente, sem roupa nenhuma, nuas, na janela envidraçada, a mulher e as meninas...", "...comportamento imoral e libertino..." e por aí ia!
O riso foi dando lugar a uma expressão de raiva, de indignação, por ter perdido uma tarde de trabalho e duas noites de sono, e remorso por acusar injustamente o putrefato ex-marido, para escutar a conselheira dizer que não poderíamos andar sem roupa, peladas, calcinha e sutiã, calcinha e nada em cima, biquini, e toda e qualquer forma de aplacar o calor que faz nesse país, DENTRO DA MINHA PRÓPRIA CASA, pois havia um vizinho bisbilhotando, sordidamente, sorrateiramente, quem sabe até usando binóculo - vigiando é o termo mais correto - e que se sentiu ultrajado, ferido no seu direito de sei lá o que, ao ver moradores sem roupa, dentro de suas respectivas casas! Um absurdo. Só usando um palavreado chulo, mas pertinente a essa situação, que expressa o que passa pela cabeça quando acontece um troço desses: é de foder! Mas não é mesmo?! Só falando assim! Um cidadão olha através da janela dele, pra dentro da sua casa - vou repetir - dentro da sua casa, e quer que estejamos todos com roupa, ou talvez até sentados, jantando...ou assistindo TV...ah...pode até ser que se sinta ofendido se não estiver no canal que ele gosta! É brincadeira, né?
Enfim, eu, irritadíssima, disse à conselheira o seguinte:
- Estou separada há 3 anos. Tenho um namorado há ano e meio, que NUNCA dormiu na minha casa e sequer saiu após a meia-noite, nas 4 ou 5 vezes em que lá esteve. O que mais prezo é a liberdade das meninas, sendo assim, vou ignorar essa denúncia absurda e ir pra minha casa.
A conselheira, como parte de sua função, aconselhou-me a não andar mais sem roupa e muito menos as meninas, porque em caso de uma nova denúncia, seria enviado um agente até a casa, para averiguar se era de fato
sem moral.
Saí de lá soltando fogo pelas ventas e, devido a construção do meu prédio, a janela da sala era a única que podia ser vista por outro apartamento, estava decidida a descobrir o autor anônimo da denúncia.
Fiz um
pitizinho no prédio ao lado do meu, descontando minha ira e revolta no pobre do zelador, certa de haver flagrado o autor de tal desfaçatez.
As meninas, que me acompanhavam o tempo inteiro, não davam
pio e por diversas vezes quase tropecei nelas.
Entrei em meu
home. Era por volta das 19 horas. Parei em frente à janela. Mandei as meninas para o quarto. Olhei, triunfante, para o apartamento de quem eu achava ser a bisbilhoteira, futriqueira. Tava certa de que era uma mulher.
Tirei a blusa, depois o sapato, a calça e quando ia tirar o
soutien, a luz de um outro apartamento, em outro prédio, repentinamente apagou e segundos após, meu telefone tocou.
- Alô! - disse rispidamente.
- Já vai começar seu showzinho? Falou uma voz feminina, adulta, rouca, notadamente mais velha que eu.
- Não, querida! Agora é o ensaio! O show, só depois das 20 horas! - respondi sarcasticamente, jocosamente.
Imaginam a conversa? Voou pena pra tudo que é lado. Foi um tal de "toma lá...", "vai se...", "sabe com quem está falando?", "você não me conhece...", "não imagina do que sou capaz!..", "tenho filho e marido...", "vai pra academia...", "vai trabalhar...", "arruma o que fazer da vida...", "procura o número do Pitanguy.." e etc.
A discussão só terminou quando eu disse que tinha identificador de chamada e que iria denunciar o marido dela e o filho, na polícia, por ficarem na sacada, se masturbando (essa foi a recomendação do meu namorado na época, advogado, caso voltassem a ligar). Se a intenção era que a maluca parasse, deu certo a ameaça.
Agora andamos dentro de nossa própria casa, como sempre fizemos: sem preocupação se há uma maluca gorda e frustrada a vigiar meu apartamento!
É isso. Tenho mais
causos, como gosto de alcunhá-los, que só comigo acontecem, rsrs, e postarei assim que possível.
Beijinhos a todos.
;D