quinta-feira, 24 de setembro de 2009

De molho.

Vou hoje fazer um apêndice, um intervalo, uma propaganda, um reclame, no relato da minha viagem, para postar, envaidecida, como somos moldados desde nosso nascimento – ainda que caráter seja nato – e o privilégio, de só quem é mãe e participa da educação da filha, pode sentir nessa empreitada.


Estive acamada, literalmente. Por três dias, só me levantei para necessidades básicas – higiene pessoal e necessidades fisiológicas.
Minha família mora em outra cidade e recentemente, minha primogênita alçou voo pra lá também. Moro eu e minha pequenina. E dois yorks.
Nunca fui uma mulher acostumada a ser servida ou a receber mimos. Venho de uma familia nada amorosa, austera e seca. Faço tudo por mim, sem esperar nada. E ninguém faz melhor que eu.
Acho repugnante, asqueroso, mulheres que pedem de tudo e para todos, de presentes a atenção. Pra mim é uma exploradora. Entendi, desde pequena, que se eu pedisse – e se esse algo não estivesse ao alcance do bolso de quem fosse -, talvez o constrangesse ou o entristecesse. Obviamente não com essa clareza toda, só sentia não ser certo pedir. Assim cresci e fui educada. Assim eduquei minhas meninas. Não peço nada e geralmente sou taxada de orgulhosa.
Ao me perguntarem “o que quer de aniversário?” ou “o que quer de natal?”, a resposta sempre foi a mesma: o que quiser.
O ruim dessa história é que sofro decepções. Já ganhei presentes horrorosos, esperando algo mais romântico, e equivocado. Até usado. Mas recebo todos com carinho, pois sei que a pessoa perdeu ao menos um minuto do dia, pensando em mim.

Minha pequenina e indefesa, delicada, doce e educada filha mais nova, mostrou, nesses dias, que valem todas as duras penas ser mãe, só para ver acertei ou acerto em sua educação, e o quanto está amadurecendo para se virar nesse mundo cão.
Suas atitudes, sua preocupação, seu modo de agir – tudo que fez – foi a prova cabal de que estou no caminho certo ou eu fui mesmo abençoada com filhas de índole boa.

Ajeitou minha cama; cobriu- me com edredom; lavou louça a noite; tirou o “gelo” dos sucos e leite, no microondas; fez sanduíches, com a opção de in natura ou quente; ligava no intervalo da aula para saber se estava melhor, dizendo quando ia se atrasar e a razão e ainda me orientava, perguntando se havia tomado meus remédios.
Serviu-me na cama, sem reclamar. Todas as vezes que a chamei, respondeu prontamente. Em seu rostinho de 11 anos, era nítida a preocupação com minha saúde e meu bem estar.
Não imaginam a vozinha dela - é uma menina de trejeitos delicados. linda, calma, tranquila.
Ficou comigo acordada madrugada, nesses dias, conversando, contando sua vida social e escolar, pedindo para eu procurar um médico e acordava as 6h30 todo dia, até que uma noite, exaurida, dormiu com o prato na mão - estávamos comendo pizza na cama, sempre repreendido por mim, mas que podia ser regra quebrada, já que a situação permitia -, que escorregou e fez-se em pedaços no chão. Chorei. Sou abençoada e tenho muita sorte.

Nunca fui tão mimada.

Nunca me senti tão amada.

Nunca me senti tão importante para alguém.

Nunca me senti tão indispensável.

Amo ser mãe.

Amo minhas filhas, incondicionalmente.

A mais velha, em tempos tecnológicos, fez a mesma coisa - preocupou-se -, por mensagem instantânea e acho até que ralhou comigo, já que é meio impossível ler entonação.
Cada vez que observo atitudes nelas que eu e minha família contribuímos, fico emocionada e orgulhosa. São seres humanos da mais alta estirpe, raridade nesse mundo torpe, fútil e egoísta.
Se morresse hoje, morreria tranquila, sabendo que elas absorveram todos os valores de família que recebi e transmiti, aqueles que moldam o homem.

Minha vida é maravilhosa, agraciada e divina. Sou muito feliz.

Já plantei uma árvore, tive filhos e, num mundo virtual, escrevo em um blog, o que é quase um livro (ué, posso pensar assim, pô?!) – pra mim, missão cumprida e tenho só 38 anos. Agora, é esperar os louros, em forma de mais atitudes honestas, gentis, dignas, decentes, íntegras, como são as da minha mãe, meu pai, meu irmão e as minhas.
E curtir...
Katherine e Rebecca. Sinônimo, em meu dicionário, de ser humano.

;-D

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Carnaval em Praia Grande - SC (parte II)

Mala em mãos, eu fui procurar pela Leli, apelido da irmã de minha amiga e a culpada por essa viagem fantástica!

O aeroporto estava vazio, as moscas, niente alma. Encontrei-a. Estava acompanhada por mais duas amigas, de ascendência oriental. Japinhas.
Beijos de boas-vindas, cumprimentos, apresentações e logo estávamos no estacionamento, onde conheci o Anderson, o herói da história – sim, pois viajar com quatro mulheres não é nada fácil.
Anderson é muito alto, louro e olhos claros, típico de quem nasceu no sul do nosso país. As meninas, com estaturas menores que a minha, magras. Ana era a menor de todas. Era ela quem dirigia. Abriram o porta- malas do carro, um celta alugado, e fizeram cara feia quando viram minha mala: era enorme, quase do tamanho do carro. Anderson tirou as mochilas, colocou minha mala e depois arrumou, reorganizando novamente.
A Leli me avisou que iríamos dormir em Porto Alegre, no apartamento do amigo do amigo da amiga dela, e cedinho viajaríamos para Santa Catarina e... Como? Ouvi bem? Santa Catarina?
- Santa Catarina? - perguntei...
- É, Raquel...vamos para Santa Catarina, passar o carnaval lá...  - daria tudo para verem as expressões dos outros três, de constrangimento, olhando pro chão - hilário!
- Mas a Luise me disse que era Porto Alegre...
- Eu sei. Não sabia se você ia gostar...fiquei sem graça em dizer que nós ficaremos em um hostel...
- Um albergue?! Nós vamos passar o carnaval em um albergue da juventude?! – surpresa! Se tá no inferno, abraça o capeta!
Jesusinhoamado!! Ninguém me disse e eu não perguntei...agora é tarde. Simbora!!
- Então, tá. Bora!
Tinha ainda que digerir a novidade. Eu tenho essa mania, péssima, de não perguntar por detalhes. Empolgada com a perspectiva de sair do meu universo, sequer quis saber onde ficaria, com quem e por quanto tempo. Então é isso. Voei até Rio Grande do Sul, pra passar o carnaval em Santa Catarina. Xiiii, Marquinho!!
Dormimos em um apartamento no centro de Porto, antigo, e cedinho estávamos acordados, para empreendermos viagem. Assentados nos respectivos lugares, com a Ana no volante – mal se via sua cabeça além do encosto, tão pequenina figura era, lá fomos nós.
Conversa vai, conversa vem, paradas para xixis e cafés, estrada, paisagem, pardais, quase seis horas depois, vejo, horrorizada, uma placa: BEM VINDOS A PRAIA GRANDE. Não acreditei na coincidência – de Praia Grande direto para Praia Grande! Só comigo mesmo!
Restava então questionar o restante do planejamento da viagem. Foi chocada que soube ser a jornada uma parada ecológica. CAGALHOS! Eu tinha sapatos com saltos altíssimos, colares, bolsas fashion, maquiagem, brincos, secador de cabelo na mala, e ia para um albergue da juventude, em uma cidade que vive do ecoturismo, com escaladas, trilhas e essas naturebas todas da moda. Agora entendi o conselho do tênis e calça confortável. Repetindo: tá no inferno, abraça o capeta!
A cidade era uma graça. Com uma única praça, da Igreja, obviamente, casas de madeira construídas sobre pés ou estacas – famosas palafitas – ruas pouco asfaltadas, barrentas e vermelhas, típica de cidade que está constantemente alagada pelas chuvas e extravasamento do rio, com seus habitantes loiríssimos e crianças tímidas que se escondiam quando passávamos.
O albergue era simples, limpo e cheiroso. D. Neri, a proprietária, deixava a roupa de cama e banho muito macia e cheirosa – além dela, só conheço minha mãe. Tinha gramado ao redor da casa, paredes de tijolos vermelhos, uma sala aconchegante, cozinha com uma mesa grande, várias cadeiras, geladeira, um rádio que não funcionava e nenhuma televisão. Celular? Nem pensar! Não havia sinal, nem da Vivo, portanto...isolamento! Delícia. Sem TV, celular e rádio. Tudo que precisava.
Escolhemos nossas camas, descarregamos o carro, guardamos os pertences no guarda-volume e procuramos saber onde era o mercado, avisados de que o mesmo fecharia no feriado, saímos correndo às compras.

Continua...

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Carnaval em Praia Grande - SC (parte I)

Fiz uma das melhores viagens da minha vida em um feriado de carnaval.


A irmã de uma amiga me convidou para passar o feriado com ela, três ou quatro dias antes da sexta-feira de carnaval, em Porto Alegre, no lugar da minha amiga, que não poderia ir. Passagens aéreas pagas, alguém precisava fazer esse sacrifício! Avante ao altar!! Aceitei imediatamente, afinal, estava solteira recentemente e precisando dar uma escapada: seria ótima a companhia de pessoas que não sabiam nada da minha vida e não teceriam comentários sobre a separação.

Aceito o convite, malas deveriam ser feitas e filhas esparramadas. Só havia um detalhe – não queria que meu pai soubesse. Sabem como é pai...estive junto com um homem por 19 anos e como é do conhecimento geral, o casamento não terminou do modo convencional (existe modo convencional?), então, papai estava sempre preocupado comigo e as netas. Ele não receberia bem a notícia de uma viagem assim, de última hora, para longe. De qualquer modo, decidi. Não iria contar. Quando ele me liga, nunca pergunta onde estou, só se está tudo bem, assim não haveria mentira, se me limitasse a responder as perguntas. A mente ludibriando o coração...

Correndo contra o relógio, consegui fazer a mala na quinta à noite, pois deveria estar no aeroporto na sexta, no começa da tarde. Arrumando a mala: roupas íntimas; camisola; pijama; shorts, camiseta; blusas; calças; sapatos, baixos e altos; chinelo; biquíni (vai saber, né?); sandálias e sapatos para baladas, assim como roupitchas fashion e bolsas; badulaques; perfumes; desodorantes; escovas, cabelo e dentes e tudo de uso pessoal e intransferível (algumas pessoas ainda insistem que sejam de uso coletivo, argh!). Engraçado! A irmã da minha amiga me ligou hoje e pediu para colocar uma calça confortável e um tênis... Bom, vamos lá: ponhamos tênis e calça confortável. Fecha zíper. Será que falta algo? Azar....o tempo é curto!

Minha amiga, que não poderia viajar, me levou até São Paulo, para Congonhas. Era o ano de caos nos aeroportos, com atrasos e gente pra tudo que é lado no saguão, irritadas, sonolentas, famintas. O ano da pérola da Marta Suplicy: “relaxa e goza”! Afe!!

Despedimo-nos na porta, com muitos beijinhos e abraços, além do famoso clichê “...divirta-se e descanse, vai ser bom pra você!”.

Fiz o check-in com certa antecedência, em contrapartida com a bagunça generalizada dos cancelamentos, pois tenho uma relação doentia com relógio e seus ponteiros.

Comprei um livro excelente – mas paguei os olhos da cara lá dentro – e sentei no chão. Era pisada vez ou outra, na muvuca de gente que transitava no saguão. Esperava pacientemente.

O celular tocou, fui atender, e ao ver o nome no visor, faltou sangue em toda a periferia do meu corpo, ficando lívida e gelada: Lang. Céus! Meu pai nunca liga essa hora! A voz, saindo da caixa do alto-falante nas paredes do aeroporto, não parava! “- Tuuuuu...tuuuuuu! Atenção, senhores passageiros! O voo 386, com destino a Manaus foi cancelado.” , “Tuuuu...tuuuu... atenção, senhores passageiros. O voo 1348, com destino a Santa Catarina, foi cancelado.”, “Tuuu...tuuuu...Atenção...” Catso! Tinha que atender, pois o deixaria preocupado! Esperei a voz calar-se (como rezei!) por instantes e atendi.

- Oi. Tudo bem?

- Oi, pai, tudo bem sim e com vocês? Voz pra dentro, engolindo em seco.

- Tudo bem e as meninas?

- Estão ótimas. – voz sumindo...

- Vai subir no carnaval ou vai rasgar a fantasia por aí? Risos.

- Não vou subir, não, pai. – eu rogo aos céus! Que acabe a bateria do celular! Que caia o sinal! Um milagre, alguém, por favor, um milagre!!! Mutleeeeeey!! Faça alguma coisa!!

- Raquel, tá ruim a ligação, eu não tô em São Paulo, tô longe, não te escuto bem...depois eu ligo. Manda beijos para as meninas. – suspiro, aliviada: Oh, Deus..obrigada, obrigada...!!

- Tá, pai. Mando sim. Dê beijos na mamãe e em todos aí.

- Eu dou. Tchau.

-Tchau, pai.

- Beijo.

-Beijos... – voz sumiu...

Água! Água! Minha língua grudava no meu palato. Diazepan, 2500mg! Cachaça, dupla! Rápido!

Ainda bem que ele não perguntou nada!

Primeira prova de fogo! Passei incólume!

O voo foi anunciado, com atraso. Fui para a fila, entrei no avião. Olhei minha poltrona e tinha uma menina, ocupando o meu lugar. Fui sentar em outro. Claro que, com tanto assento no avião, escolhi justamente o lugar de uma mala sem alça! O chatinho me olhou e foi correndo contar para a aeromoça que estavam ocupando o lugar dele, invés de educadamente pedir explicações a mim. Saquei tudo. Ia ser aquele voo!

A moça me interpelou, pediu meu bilhete e me informou que estava no assento errado. “Queira me acompanhar, senhora, mostro onde é sua poltrona...” . Fuzilei com o olhar o mala sem alça, mas ele devolveu com ar de vitória e sentou radiante na cadeira. Só faltou cantar o tema do Senna pra mim: Tã, tã, tã...tã, tã, tã... Peguei minha bolsa, o livro e um pacote de M&M e acompanhei a comissária até a minha numerada, que estava ocupada pela garotinha. Eu jamais pediria o assento a ela ou ao pai. Seria desumano tirar a menina da janela. Mas a comissária tirou, e o pai, meio contrariado (agora, por causa do mala, teria que viajar com o pai da menina me olhando de soslaio o tempo todo!), perguntou se eu não podia trocar com ela, pois a dela era no corredor. “Claro, sem problema!” – eu disse. Política da boa vizinhança! Tudo resolvido. Só faltava o avião decolar.

Acomodei-me, abri o livro e retomei minha leitura. Havia na aeronave um que dê impaciência, frenesi, inquietação. Os passageiros se revezavam em levantar e sentar, perambulando pelo corredor, falando alto, mudando malas de lugar, deixando o ambiente irrequieto e turbulento. Eu estava imóvel e se não fosse por alguns esbarrões na minha poltrona, estaria concentrada totalmente no livro. Se...

O passageiro ao meu lado era bonito. Alto, muito alto, diria que uns 195cm pra mais, atlético, cabelos curtos, fartos e louros, olhos verdes muito claros, rosto quadrado, com masséter proeminente, trajado com roupas esportivas, lembrando um tenista. Era americano, ou como diria meu irmão historiador, “...norte-americano, pois somos todos americanos, e aqui, somos sul-americanos, ...”, e levava sua filha de volta pra casa da mãe, em Porto Alegre, onde ficaria no carnaval. Trabalhava em São Paulo, mas nascera nos Estados Unidos (não precisaria dizer – seu sotaque, somado ao biótipo, revelavam ser gringo).

Pensei: a viagem será ótima. Um homem lindo ao meu lado, aparentemente inteligente, agradável - a todos os sentidos: olfato, audição, visão...bom, o tato, esse não testei! Não ousem pensar que, por não citar o paladar, entrou no rol - infelizmente não, mas que devia ser agradável em TODOS, ah...devia sim! Anyway...

Como nem tudo são rosas...

O Inferno, de Dante, começara. Experimentei estar no próprio limbo, entre o inferno e o paraíso...

A adorável criaturinha - a garotinha, com a impaciência característica da idade (devia ter cerca de 5 anos), cansada de olhar pela janela minúscula do avião, sem nada para fazer, sentada quieta, iniciou um rosário de pedidos para sair, negado veementemente pelo seu pai, em inglês: “No, baby...”, “...wait, please...”, e depois de vários "pleases", "babys" e "nos", como sempre fazem as crianças, venceu pelo cansaço. Se fosse minha filha...

Aquela menininha linda, de olhinhos claros, cabelos fininhos e loiríssimos, maçãs do rosto rosadas, com seu ursinho fofinho de pelúcia nos braços, ESTAVA ME DANDO NOS NERVOS!!!

Não conseguia mais ler uma palavra sequer do livro. E não havíamos alçado voo, ainda.

Ela ficava em pé na cadeira, pulava, choramingava, fazia manha, resmungava, com uma vozinha irritante e estridente, numa miscelânea de inglês e português, balançando as três poltronas ao pular, inflamando minha ira, ao ponto de amaldiçoar as crianças da face da terra, todas! Sentada, suando frio de cólera, teso de irritação, via o pai cada vez mais impaciente, até que resolveu levá-la ao banheiro.

Saí do limbo e cai no inferno!

Até pousarmos em Porto Alegre, num percurso aéreo de 275.487 horas – o tempo é relativo – essa menina saiu do lugar umas 347 vezes para ir ao banheiro.

Para tentar acalmá-la, eu abri o meu delicioso M&M e ofereci. Ela aceitou, segurou o saquinho, abriu a mochila rosa e guardou! Catso! Num provei nenhum!!

O pior estava por vir! Toda vez que ela resolvia ir ao banheiro, eu precisava levantar, num procedimento ritualístico: retira tudo que está sobre a bandeja, afasta, segura a bolsa, levanta e espera no corredor. Minha tolerância – sou muito – estava no saco, que não possuo!

Não contente em tumultuar o voo, ela, fechando com chave de ouro, na hora do pouso, nervosíssima com a dor de ouvido causada pela pressão, mobilizou quase a metade dos passageiros.

Fiquei penalizada...A aeromoça pedia para ela abrir a boca; outro passageiro, para ela fechar, apertar o nariz e fingir que ia assoar; outro, para ela virar a cabeça pra cima e tentar espirrar – o pobre do pai, sem saber o que fazer – e eu? Contando até dois milhões, pois o caos estava instalado. Uma comissária de bordo pedia aos passageiros para sentarem (a menina chorava e gritava tanto, que várias pessoas desataram o cinto e foram lá ver o que se passava), outra assistia a cena impassível e a mais próxima, debruçada sobre mim, em vão tentava acalmar a garotinha.

Tive um surto, quase psicótico! Livrei-me do cinto, passei a mão na menina, coloquei no meu colo, passei o cinto em nós, tapei o nariz dela (dois coelhos: o choro e o grito estancados – chamado em odontologia de Técnica do Roxinho, entenderam?) e pedi para tentar assoar, bem forte, com voz de comando, autoritária e confiante. Pronto. Ela forçava, parou de gritar e chorar e a ordem foi restabelecida no voo para Porto Alegre.

O pai, incrédulo na minha atitude, me agradeceu quando abriram as portas e ainda me ajudou a buscar minha mala na esteira. Eu só queria sair dali. Estava com um zumbido no meu cérebro, parecido com aqueles que eu tinha, quando ficava ao lado das caixas de som, nos shows de rock do demolido Clube Caiçara, por ouvir os gritinhos dela...

Essa viagem daria o que falar...

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Só comigo...I

Dia desses, atendendo um paciente, a secretária bateu na porta da minha sala, pediu licens e disse:
- Doutora, a Katherine no telefone. Disse que quer falar com a senhora...- se eximindo, com a sobrancelha arqueada e expressão de "eu disse que a senhora não podia atender, mas..."
Bom, primeiro ela sabe que, quando estou atendendo, é quase impossível, visto minha profissão - dentista -, atender o telefone.
Ambas sabem, pois Katherine é minha filha mais velha. O combinado, sempre, é: deixe recado que eu retorno "assim que possível".
Mesmo assim, removi as luvas, achando ser algo sério - como um incêndio no edifício em que resido - e lá fui eu, atender o telefone...
- Alô - com voz de desagrado.
- Mãe?...
- Fala, filha...
- Mãe...então, mãe...tipo assim... uma mulher ligou aqui e disse que ia chamar a polícia!!! - num tom desesperada...
- Chamar por quê? O que vocês fizeram? - entre dentes, sussurrando, pausadamente.
- Nada, mãe...eu, hein!...tipo, a mulher ligou, e perguntou se..tipo..., tinha algum adulto aqui e...tipo..., eu falei que não...daí, tipo, ela disse que se a gente não parasse de andar pelada...tipo...ela ia ter que chamar a polícia pra gente!!
- Katherine!! Não acredito que você ligou aqui, sabendo que eu só atendo se for uma emergência, e eu achando que era, pra me dizer isso? Em casa, quando eu chegar, nós conversamos....tchau!!
- Mas, mãe...
- Tchau, filha!
- Tá...tchau, mãe... - visivelmente contrariada.
Voltei à minha atividade e a tarde transcorreu sem maiores problemas.
Passado uns dias, chego em casa a noite, após um longuíssimo dia de atendimento e me deparo com uma correspondência do Conselho Tutelar. Meu queixo caiu. Sou separada, em circunstâncias, digamos, nada amistosas, e a primeira pessoa que veio a minha mente foi o falecido! Logo pensei: aquele pulha, depois de tantos anos, vai voltar a me encher os pacovas! Oh, Lord! Dai-me paciência....
A audiência - será que posso chamá-la assim? - era daqui a dois dias. Nesse período, o inconformismo me corroeu.
Desmarquei os pacientes e fui, na data oportuna, à entrevista (também não sei se é chamada assim...). Foi um estresse só!! Gritei com as meninas, com o defunto, com o transeunte, com o semáforo, com a vaga apertada defronte ao conselho...Praticamente uma TPM antecipada.
Bom, entrei, esperei minutos intermináveis, até ser atendida pela funcionária, atrás de uma parede, sentada em um banco, com um vidro minúsculo nos separando, tais quais as bilheterias de estádios de futebol. Imaginei a razão. Quantos pais e mães, na fúria em que me encontrava, não deviam ter voado no pescoço - largo, diga-se de passagem - da funcionária. Ao menos terem a vontade de esganá-la, meu caso naquele momento.
Estava agendado para as 13 horas - se tenho um TOC, desses obsessivocompulssivíssimo, é com horário. Se eu chegar atrasada em qualquer compromisso, pode clamar pelo resgate pois algo de ruim aconteceu.
Já passava das 15 horas. Nada. Necadepitibiribas de atendimento, entrevista ou audiência. Subia o sangue, junto com os ponteiros do relógio e da minha paciência...
17h30. Hora em que fui convidada a entrar na sala da conselheira. Indignação era meu nome! Por tudo. Como eu podia ter sido denunciada ao Conselho Tutelar, órgão que apura casos de abusos, violências? Eu? Qual seria o motivo? Minha casa é tranquila, não tem gritaria, festas de arromba, nada, nada que me levasse àquele lugar. Não espanco minhas filhas, não abuso fisicamente e muito menos psicologicamente. Na realidade, o ser vivo na minha casa que mais escuta bronca é meu york, machinho minúsculo - não pesa dois quilos - que insiste em marcar território por todos os cantinho possíveis, da casa toda.
Não informavam por telefone o motivo, o assunto, de modos que devia mesmo ir até lá. Martelei aqueles dias todos o que poderia ser, que houvesse levado o acéfalo do meu ex, pai das meninas, a tamanha maldade. É, só podia ser ele. Aliás, naquele momento, se chovesse ou um passarinho defecasse na minha cabeça, a culpa seria dele!!
Entrei. O recinto era úmido, sujo, com uma larga janela e havia duas mesas, nas quais estavam sentados nas cadeiras giratórias antigas, rasgadas e desbotadas, um homem e uma mulher - obviamente cada um em sua mesa. Olhei para eles. O suor, de constrangimento, fazia um bigodinho no meu rosto...
A mulher pediu-me para sentar. Declinei, dizendo que estava sentada desde as 13 horas - para ela saber que eu cheguei na hora marcada!
- Boa tarde. - ela saudou.
- Boa tarde - respondi polidamente.
- É a senhora Raquel? Nessa hora eu me vi passando por cima da mesa e apertando o pescoço da mulher, mas era só um pensamento, um devaneio...
- Isso - respondi secamente.
- Recebemos uma denúncia anônima e...- a interrompi.
- Anônima?! A- nô-ni-ma?! Como assim, anônima? Quem faz denúncia anônima?? Estava estupefata!!
- Sim, senhora. A maioria das nossas denúncias é anônima. Pois bem. O teor da denúncia é... - nova interrupção. Desta vez estava sentada. Não acreditava que eu havia sido denunciada e mais ainda: anonimamente! Quem seria o FDP que fez aquilo, hein?
- Sim, qual é o teor? O que diz aí...mas não dá MESMO pra saber quem é? Não tá escrito aí, num cantinho? Independente disso, foi o pai delas! Claro que foi! Quem mais podia ser? Ele vive pra me aborrecer! É assim desde que pedi pela separação, porque... - agora fui interrompida.
- Senhora, o teor é sério. Diz aqui que a casa onde moram as menores, suas filhas, é uma casa de libertinagem. Onde há comportamento libertino...vivem exibindo, nuas, através de janelas abertas, o corpo aos vizinhos...
Fiquei muda. Passado o choque, desandei a rir.
- A senhora só pode estar brincando comigo! É uma pegadinha! Tem câmeras nesta sala, né? Anda sorrindo, aliviada.
- De jeito maneira. Leia aqui. - apontou com o dedo longo, unha manicurada, a linha onde estava o parágrafo que dizia "...se exibem, diariamente, sem roupa nenhuma, nuas, na janela envidraçada, a mulher e as meninas...", "...comportamento imoral e libertino..." e por aí ia!
O riso foi dando lugar a uma expressão de raiva, de indignação, por ter perdido uma tarde de trabalho e duas noites de sono, e remorso por acusar injustamente o putrefato ex-marido, para escutar a conselheira dizer que não poderíamos andar sem roupa, peladas, calcinha e sutiã, calcinha e nada em cima, biquini, e toda e qualquer forma de aplacar o calor que faz nesse país, DENTRO DA MINHA PRÓPRIA CASA, pois havia um vizinho bisbilhotando, sordidamente, sorrateiramente, quem sabe até usando binóculo - vigiando é o termo mais correto - e que se sentiu ultrajado, ferido no seu direito de sei lá o que, ao ver moradores sem roupa, dentro de suas respectivas casas! Um absurdo. Só usando um palavreado chulo, mas pertinente a essa situação, que expressa o que passa pela cabeça quando acontece um troço desses: é de foder! Mas não é mesmo?! Só falando assim! Um cidadão olha através da janela dele, pra dentro da sua casa - vou repetir - dentro da sua casa, e quer que estejamos todos com roupa, ou talvez até sentados, jantando...ou assistindo TV...ah...pode até ser que se sinta ofendido se não estiver no canal que ele gosta! É brincadeira, né?
Enfim, eu, irritadíssima, disse à conselheira o seguinte:
- Estou separada há 3 anos. Tenho um namorado há ano e meio, que NUNCA dormiu na minha casa e sequer saiu após a meia-noite, nas 4 ou 5 vezes em que lá esteve. O que mais prezo é a liberdade das meninas, sendo assim, vou ignorar essa denúncia absurda e ir pra minha casa.
A conselheira, como parte de sua função, aconselhou-me a não andar mais sem roupa e muito menos as meninas, porque em caso de uma nova denúncia, seria enviado um agente até a casa, para averiguar se era de fato sem moral.
Saí de lá soltando fogo pelas ventas e, devido a construção do meu prédio, a janela da sala era a única que podia ser vista por outro apartamento, estava decidida a descobrir o autor anônimo da denúncia.
Fiz um pitizinho no prédio ao lado do meu, descontando minha ira e revolta no pobre do zelador, certa de haver flagrado o autor de tal desfaçatez.
As meninas, que me acompanhavam o tempo inteiro, não davam pio e por diversas vezes quase tropecei nelas.
Entrei em meu home. Era por volta das 19 horas. Parei em frente à janela. Mandei as meninas para o quarto. Olhei, triunfante, para o apartamento de quem eu achava ser a bisbilhoteira, futriqueira. Tava certa de que era uma mulher.
Tirei a blusa, depois o sapato, a calça e quando ia tirar o soutien, a luz de um outro apartamento, em outro prédio, repentinamente apagou e segundos após, meu telefone tocou.
- Alô! - disse rispidamente.
- Já vai começar seu showzinho? Falou uma voz feminina, adulta, rouca, notadamente mais velha que eu.
- Não, querida! Agora é o ensaio! O show, só depois das 20 horas! - respondi sarcasticamente, jocosamente.
Imaginam a conversa? Voou pena pra tudo que é lado. Foi um tal de "toma lá...", "vai se...", "sabe com quem está falando?", "você não me conhece...", "não imagina do que sou capaz!..", "tenho filho e marido...", "vai pra academia...", "vai trabalhar...", "arruma o que fazer da vida...", "procura o número do Pitanguy.." e etc.
A discussão só terminou quando eu disse que tinha identificador de chamada e que iria denunciar o marido dela e o filho, na polícia, por ficarem na sacada, se masturbando (essa foi a recomendação do meu namorado na época, advogado, caso voltassem a ligar). Se a intenção era que a maluca parasse, deu certo a ameaça.
Agora andamos dentro de nossa própria casa, como sempre fizemos: sem preocupação se há uma maluca gorda e frustrada a vigiar meu apartamento!


É isso. Tenho mais causos, como gosto de alcunhá-los, que só comigo acontecem, rsrs, e postarei assim que possível.

Beijinhos a todos.
;D