domingo, 9 de outubro de 2011

Insensível

Ano passado, antes do acidente com meu irmão, costumava tomar meus cafés pela manhã, religiosamente, em uma casinha de café perto do meu consultório, pois não tinha mais companhia matutina (minha filha passou a beber um iogurte ou um achocolatado, correndo, enquanto ainda colocava o uniforme).
Pela assiduidade, passei a cumprimentar algumas pessoas, habitués do local, primeiramente com um aceno de cabeça, que evoluiu para verbal e depois, naturalmente, as conversas corriqueiras aconteceram. Destas pessoas, um senhor, com voz de locutor de rádio, era quem mais puxava assunto.
Trocamos informações sobre nossas profissões e fiquei deslumbrada pela vida deste homem – nunca procurei saber se era verdade – pois dos altos de seus quase 70 anos, havia feito de tudo um pouco e casado, segundo ele, com mulheres lindíssimas, misses e modelos. Viagens a países exóticos, festas faraônicas, além de amigos influentes e famosos, povoavam seu mundo. Narrava sua vida com tanta riqueza de detalhes que cheguei a ficar com certa inveja por ter passado pela minha sem essas aventuras todas. Poderia ter virado um filme de aventura, romance, discórdia e superação, com direito a seqüências quase infinitas, ou livros, ou seriados. Deve ter sido um homem bonito, pois é alto e olhos azulados, pele morena e cabelos escuros, não totalmente brancos, e ainda conserva o ar de homem elegante e educado. Sua voz de trovão deve ter arrasado corações, assim como os poemas declamados entre pausas nas conversas, demonstrando ser um galanteador e romântico.
Um dia pediu o telefone do consultório e entreguei um cartão, onde constava inclusive o número do meu celular.
Ligava vez em quando e, sempre educado, conversávamos sobre assuntos fascinantes e variados (tenho verdadeira paixão por amizades que me excitam intelectualmente e procuro fomentá-las), por minutos que cresciam ao longo dos dias.
Até que os elogios sobre minha aparência e “inteligência” começaram a extrapolar a esfera da amizade. Passou a ser inconveniente com suas ligações repetidas, a qualquer hora do dia ou da noite. Aparecia no consultório, com a desculpa de que eu trabalhava muito, para me levar em um restaurante assim ou assado, e beber este ou aquele vinho. Mesmo que eu atendesse ao telefone e falasse claramente para ele não ligar, ele não respeitava. Deixava recado na caixa postal com poemas e canções. Parti para freqüentar o café em outros horários (diziam que ele sempre perguntava por mim e, como era de seu vezo assediar mulheres mais novas e elas serem receptivas, segundo as más-línguas, pela situação financeira folgada, ficou inconformado que suas investidas dizendo o que tinha e tem, não surtiram efeito comigo). Exasperei-me com ele. Veio o acidente com meu irmão e a oportunidade para ignorar suas ligações, já que falar não adiantava.
Não freqüentei mais o café, mais por ficar mais fora da cidade que nela, na época do acidente, e hoje, ao entrar para tomar um cafezinho pós-almoço, reencontrei-o. Confesso que fiquei chocada. Ele passou por problemas de saúde e aparentava ter muito mais que sua idade. Faltavam dentes em sua boca, sua voz tremulava, mancava de uma perna e estava bem acima do peso. Nestes tempos que não o vi, gravou um cd com músicas próprias, e em um de seus primeiros shows, caiu do palco, quebrou o fêmur e teve um AVC durante a cirurgia. Disse que estava voltando aos poucos, tentando se recuperar da melhor forma possível, mas percebe-se que a idade estava pesando e muito.
Meu maior constrangimento foi quando, depois de perguntar como meu irmão estava e bendizer a recuperação dele, dizer que vai me presentear com o cd, para prestar atenção em uma canção específica, pois escreveu pensando em mim. Fiquei com remorso porque, apesar de já ter sido musa inspiradora de outra canção – nenhum sucesso nacional, diga-se, mas faz muito bem pro ego saber que é fonte de inspiração de poetas e músicos – a exasperação com que respondia suas perguntas hoje, a total irritação na minha voz e todo o conjunto de negação na minha linguagem corporal, não condiziam com o carinho que desprendeu dele, de seu olhar e sua voz titubeante. Não precisava ter sido grosseira e sempre que tenha esse tipo de reação, gratuita, me incomoda. Deixei-o triste. Estou sempre pregando a filosofia do “paz e amor” mas na hora em que vislumbrei iniciar todo aquele assédio novamente, fui intolerante e pré-julgadora, já que ele estava em companhia de uma mulher jovem, de uma insensibilidade fenomenal e injustificada.
Hoje, mais uma vez dormirei mal, sabendo que, neste mundo já tão grosseiro e sem educação, contribuí para que a tarde deste senhor, maltratado pelo tempo e com pouca saúde, ficasse um pouco pior...

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